HORIZONTES
HORIZONTES
1. RAWALPINDI
A Benazir Bhutto, em memória
Derramem-se as flores.
Este dia passará.
Todos estarão entregues
à dor de serem efêmeros.
A vida passará.
Passarão os homens e mulheres
que choraram, riram e viveram.
Passará o gesto,
o olhar, a voz, a luz.
Mesmo as flores passarão.
As aflições morrerão com elas.
Nelas restam os adeuses
e o silêncio.
31/12/2007 – 1h15
2. VENEZA
Esta a casa.
A areia em que assentaste tua messe
aqui se eleva acima do horizonte,
lume a apontar distâncias de um céu e outro
que tomba sobre a terra.
Concebes a casa onde estiveste,
vestígio de bruma e nau despida.
Teus velames,
cordas estiradas
a girar a roda
de tua fortuna.
12/04/2008 – 14h30
3. AMÃ
O que mais há,
na destêmpera de agora,
o fruto, frágil
e circunspecta medida,
enquanto espera.
A vida há de ser mais larga
por vê-la de fora,
e de dentro,
fecha-se em escarpa e,
íngreme, ausculta o salto.
6/05/2008 – 3h23
4. CÁDIZ
Ouço, na clareza desta tarde,
o sol se pôr sobre a terra escura.
Eu, qual peregrino,
no silêncio de minha prece,
oro em versos que me escapam.
Fico, na caverna,
entre crânios limpos,
catacumbas
de meus santos.
30/05/2008 – 13h53
5. ORMUZ
O que fui de início e já não sou,
cantilena de repastos múltiplos,
ordem de vida e de estreiteza,
sinal de homens e tristeza.
O que sou e não reconheço,
uma face mais antiga do que esta,
esta, nova, e ainda amena,
para que serve,
alento e personagem?
Não sei, e o que serei é muito.
23/06/2008
6. ALEXANDRIA
Aqui fica o farol,
em meio a toda a terra.
Circunavega o barco
e eu vou à proa,
sereia esculpida na madeira.
O barco singra sem remos,
as velas rasgadas ao vento,
e o mastro, ainda ereto,
espera o raio parti-lo ao meio.
Teus deuses se foram
e só o mar te acompanha.
25/07/2008 – 22h30
7. AGRA
Teus poemas nascem
como repentinos frutos,
de uma árvore antiga,
sobre o solo árido,
que colhe a seiva última,
lastro de poesia,
e se funde em tua pena,
derramando as sementes,
arquejantes de beleza
e plenitude.
27/07/2008 – 20h22
8. BABEL
A cada noite, pousam mistérios.
Um negror em torno das árvores,
deslocando-as da paisagem.
Torpor e desvelo a cobrir os olhos.
Ao longe, o indecifrável tormento,
irradiando por toda parte
– o gesto, imenso,
sobre o que nos resta.
28/07/2008 – 1h58
9. NÍNIVE
Assim nos entretém,
a vida, doçura extrema,
e a morte, nefasto antro,
entre a música ouvida,
e a palavra já dita,
sempre que lembrada,
desdita,
daquilo que me sobrevém.
28/07/2008 – 13h54
10. BÓSFORO
É minha sombra essa antiga alma,
suspensa agora, à espera,
dos dias e horas que se sucedem,
à míngua, longa e ferida de mitos,
essas faces bruscas e sentidas,
esse acaso de quimeras,
enfatuada sede que não finda.
31/07/2008 – 13h50
11. SHIRAZ
Começo por dizer-me presente,
porque as horas,
essas infindas noites,
dirigem-se sozinhas ao seu destino.
Envolvo-me aos poucos,
com os dizeres de ontem,
pois o que é dito agora
não me soa autêntico.
Serei esta inoperante espera,
tudo à cerca do meio,
a vida, a obra e seu permeio.
4/08/2008 – 23h30
12. TEERÃ
Segue, tu que esperas,
nada virá a teu encontro por si só.
Terás o que te foi dado
e embora expresses tua demora,
a vida já te acenou ao longe.
Vem, e junta-te aos teus.
Tudo que fizeste é teu,
mesmo ausente de ti.
4/08/2008 – 23h33
13. TÚNIS
A casa, esta oca paisagem,
sem sortilégio,
paredes impregnadas de espanto,
tua vida entrevista,
fechada como um livro.
Não te demores sobre o dia,
certo que passarão
e se nem lembrarão de ti.
4/08/2008 – 23h35
14. TRIESTE
Ora, o memorial de tuas vidas,
aquela que pensaste tua e a outra,
que não viveste.
Pensa, senão antigas
as vitrines do agora,
mal teus olhos pousam sobre elas.
És esta imagem ou aquela,
que nunca viste.
4/08/2008 – 23h37
15. RAPALLO
Esquece, por ora, a vida.
Ela não te diz a que vieste.
Antes tu lhe dizes a que ela serve.
Serve para descobrires os espaços,
os vãos entre os dias e horas,
aqueles momentos em que nada acontece
e só tu olhas.
5/08/2008 – 00h36
16. RAVENNA
Vieste.
A vida agora pousa entre dorsos,
essas asas dobradas sobre os ombros,
tristeza, rosto e paisagem.
Vem.
Nunca o céu foi assim imenso,
cúspide do triângulo,
a casa de teus amores,
última parada antes do paraíso.
8/08/2008 – 21h40
17. RABAT
Viver é mais simples agora.
Descobriste os mecanismos das horas,
o abre-e-fecha de portas.
As janelas abertas,
o dia olha inteiro, indiviso,
solilóquio de urdidas horas.
A vida inteira,
ensimesmada.
8/08/2008 – 21h43
18. BRINDISI
Nada, diz a voz soturna.
Tua vida nada é senão o teu silêncio.
Vive, pois, essa solitude mesclada de hiatos,
em que passas os dias,
como se não houvessem.
O horizonte, eis o que resta.
8/08/2008 – 22h44
19. ISLAMABAD
O que buscas é tudo.
A lousa em que escreves,
a mesa em que apoias teus livros,
as folhas soltas anotadas,
sem perdas de teus anos,
que amores trouxeste,
que mitos ocultaste,
quais sons deixaste de ouvir?
Teu lamento é murmúrio,
que as folhas envolvem
com seu ruído.
9/08/2008 – 2h37
20. KIEV
Desbasta a hora de suas palavras,
o rito com todos seus ciclos, o tempo,
algibeira comum de todos os homens,
o que passa que não se vê?
O invisível além do horizonte,
o contorno bravio do continente,
tua água, teu espelho,
festim de corpos,
a vida em andrajos,
despida.
9/08/2008 – 2h41
21. TURIM
Dize,
tua serenidade basta a ti mesma,
circunscrita ao tempo de teus amores,
natureza em sua forma vivida,
porque dizer é sempre urgente
ante a razão das horas.
E sem elas, nada serão.
10/08/2008 – 14h51
22. BABILÔNIA
Viver, órbita aberta,
loucura de ti mesmo
sobre o espelho vário.
Te deténs ante a aurora,
e o dia antes de começar,
te aguarda, essa memória
retirada de teu tempo havido,
dobra póstuma,
tua voragem antiga.
11/08/2008 – 2h25
23. ALMERIA
Hoje tens a vida devolvida,
como em todas as horas,
e o pressentimento não te impediu de nada.
Antes foste destemido,
entregue à tua ausência,
folia de tua têmpera desfeita.
Bebe o cálice de penúria.
A vida te serve de guarida.
11/08/2008 – 2h30
24. MÁLAGA
Nascedouros,
virgens águas,
ninfeias, limo e pedra,
areias, terras devolutas,
claustro, abismo,
tua sede e sombra,
dedos úmidos,
febre alta,
a íngreme escada,
planalto, aerossóis,
círculos concêntricos,
tua fala, teu riso,
última cor da aurora.
18/08/2008 – 00h37
25. SEVILHA
Nada resta além de um dia.
Um dia basta por si só.
Nada, além de palavras, silêncios,
obscuros meios e temporais.
Nada fica: nem a morte,
essa escura manhã.
7/09/2008 – 21h07
26. FARO
Entreato.
A forma de dizer as coisas
sem ter de esperar por elas.
O dia.
Esta janela aberta
sobre tudo que se dissipa.
O pó dos móveis
se instala despercebido.
Fulgor de auroras.
Quando me sentir só,
abrirei a porta para sair.
Ficarei.
A escolha última de uma hora
que demora a passar.
Laço.
A vida ensina a desunir.
10/09/2008 – 11h44
27. GRANADA
Não pressenti o perigo,
porque me amavas.
Não, não pressenti o perigo,
porque eu te amava.
E amar era a forma
de redimir tudo.
Perdoar em ti
as imperfeições,
porque eras só,
e escolhias a solidão
como punição.
Viste-me frágil
e puniste a mim também
por te amar.
14/10/2008 – 10h46
28. CARTAGENA
Os mares te devolverão
a tua imensa saudade.
E antes que professes
tua angústia,
será bravio e destemido
em tua última viagem.
Ah, a despedida dos aflitos.
Ah, a jornada dos dias cáusticos.
Tua sombra será tua amiga
e retornarás ao jovem
que deixaste um dia.
16/10/2008 – 7h54
29. PISA
Os dias.
Esses fados presentes
aninham-se ao obscuro fim
próximo a tudo.
A dor.
Essa falta de conforto
nas horas graves.
O olhar.
Gesto anterior à palavra,
anoitecer de bétulas,
pausa entre o choro e o riso.
Motivo.
Restam os dias mornos,
aqueles que passam
e se esquecem.
29/10/2008 – 15h41
30. ISTAMBUL
O que dizer das horas inteiras,
desbastadas graças,
a atingir o célere passo,
a voz das longas
celebrações do acaso,
esta a absurda fala,
longinquamente dita,
pausa íntima,
entreabrir de olhos
para além da transparência do dia
que se oculta em sua sombra,
à revelia,
sua ínfima aurora.
7/11/2008 – 16h54
31. MADRAS
Abriste o tempo em gomos,
fruta inteira dada aos pedaços,
para cada parte, um gosto,
visível e táctil favo,
com que prendes os dedos.
Este o tempo degustado,
essa fonte maior que a vida,
sabor de tudo, num naco.
19/11/2008 – 17h20
32. JACARTA
A mim restam essas coisas,
poucas,
larvas de um não-sei-quê que passa,
nós a serem desatados,
livros por ler,
roupas por arrumar,
e a vastidão das ideias novas,
célebre futuro que inventamos.
21/11/2008 – 19h25
33. ROMA
À memória de John Keats
A febre nos acompanha
todo o tempo.
Os livros, os pórticos,
módicas liras,
estreitas vielas entre antigos edifícios.
Roma se visita à tarde.
Igrejas, escadarias,
janelas abertas sobre a praça,
o céu azul a descoberto,
os sinos de São Pedro que retinem.
Sentados diante da Fontana di Trevi
os olhos passeiam em volta.
De que lado fica a piazza?
O Café do Brasil.
O bistrô acomoda-nos
na pequena mesa e trazem
o vinho, os talheres, a massa.
Um dia de caminhada
junto à casa que olha sobre praça.
A Barcarola de mármore
canta seus nomes escritos na água.
O Fórum, a Via Appia,
a Casa das Vestais.
Estar aqui nos comove.
Piazza di Spagna.
Princípio e fim
da poesia.
Rio, 24/01/2009
34. ALICANTE
Nunca viste dia algum
que não se abrisse inteiro,
vida pronta para ti,
coisa que se desse toda,
póstuma, primeira.
Nada deixou de ser teu,
porque quiseste, antes,
no princípio, a eternidade.
29/01/2009 – 15h53
35. ODESSA
Fala
vida entrecortada de signos
viagem ao centro do universo
coma de cometa
a tocar a lua.
Vê
que se passaram os dias
os sóis se puseram ao longe
e os horizontes não arredaram.
Os oceanos profundos
conhecem as sendas do mundo,
os arrecifes, as naus submersas.
Tudo ficou à míngua
de uma antiga cantiga
que vez por outra volta à praia.
5/02/2009 – 11h09
36. RIGA
Tua efemeridade te assombra.
Muito de ti se dissipa em teus gestos.
Te afogas em pensamentos que a nada levam.
O mar te naufraga, a infelicidade te espreita,
És segundo os arrecifes,
O mais solitário poeta.
Casca inaufragável,
Estertor de homem a galgar o abismo.
Jamais serás feliz por ti mesmo.
31/03/2009 – 18h28
37. KIEV
Eco e tua casa se avizinha.
Nuvem de vir a ser desde ontem.
A vida te devolve a um tempo
a que não pertences.
Tu, imutável signo de labor e espanto.
31/03/2009 – 18h30
38. KIROV
Revisito meu instante único,
Aquele à beira de mim,
porque estou mais próxima da vida
que tenho dentro.
Não me basta viver a vida.
Ela me tem e mais nada.
Quero ser o impossível para mim.
O que não esperavam que eu fizesse.
E fiz.
E pronto.
22/04/2009 – 9h50
39. ANCARA
Unidos, os passados se dividem,
E tua fome ainda há de se extinguir.
Olha, ainda há estrada,
este céu sobre o horizonte à distância.
A casa, esta tarde próxima,
tantas fragrâncias em teu dorso,
fecha, a hora passa, e o dia, auscultado,
é ainda tardio, para levar ao futuro
a tua memória.
22/04/2009 – 20h07
40. GIZÉ
Para Cecília e Léo Ferreira
Ouve
sol a sol
penúria árido deserto
vida oásis segredo
sob a tamareira em flor.
O vento ergue as flâmulas
agitam-se os cordões
tendas brancas etéreas
almíscar sândalo ouro.
Verte
esta hora em outra
compram-se os livros quimera
passa esta fome de eras
tempo absoluto em dobro.
Venta
soam sinos
camelos singram areias.
Fausto
a face ornada
a manta sobre o leito
a espera.
Vive
assim como antes
nada começa a esmo.
A terra orbita em silêncio
em seu fuso
roca a rondar o infinito.
25/08/2009 - 1h48
41. SAMARCANDA
Esbagaço o corpo e dedico
o tempo a retirar
o espaço entre os grãos.
Pedro Du Bois
O tempo de semear
as uvas.
O tempo de separar
os grãos.
O tempo de colher
e de beber.
O tempo de passar
e deixar passar.
O tempo de escorrer
a lama
sob os pés,
de escorrer o vinho
dos barris.
O tempo de plantar
as sementes.
O tempo de escrever.
O tempo da terra.
O tempo de crescer.
Salvar os frutos,
replantá-los
e colhê-los.
Alimentar os homens.
Ceifar, podar, nutrir.
O tempo de ser,
tão-somente ser.
31/08/2009 - 21h58
42. SUSA
Inda mais a fadiga
de vagar a esmo, desmedida,
mulher de encanto e vida,
tudo à beira do mundo,
esse cubículo de espera,
a ânsia maior que o caos
lança dados ao infinito,
debulha as lágrimas do olvido,
filhos, colheita e repouso,
a casa acolhida,
lume, candeeiro, abrigo.
Na centelha esparsa
existe a nódoa,
casca, semente dividida,
resta um pouco de sol sobre a água
fria dos peixes colhidos,
fartura de tua mão sobre o óbolo
do trigo.
Olha-me, és outro em tua medida.
Fardo, laço, descolorido.
Eu não pude amar
e amar foi meu pedido.
Tempo, farsa cabal,
relógio, ampulheta, círios,
toque de harpas celestes,
eu, ainda mais o que sou,
descaminho, teu caminho
de amor.
1/12/2009 - 12h08
43. MILETO
Não tracei teu rosto com a pena curva,
moldei-te apenas com meus olhos,
de tanto pintar-te sem tintas.
Guardei as palavras para descrever-te,
e o fel e a sina te expuseram inteiro.
Nada pude fazer para velar-te.
Minha obra era esperar a esmo.
A casa, esta lúcida forma transparente,
abriu as portas para receber-te.
As janelas se abrem para um sol esquivo
e a chuva e a tarde testemunham outros dias.
Demoremos sobre o ar e a bruma.
Nada foi esquecido que não tivemos.
Ter não se reduziu ao pó.
Os livros se fecham para nós.
Tudo está preso a algum dia que passou.
Tens as chaves das trancas presas aos ilhós de tuas velas.
O barco não singra antes do anoitecer.
É dia ainda sobre o horizonte.
Esses favos antigos semeiam auroras.
Amanhã, seremos novos.
Outros rostos para outra manhã.
24/01/2010 - 00h33
44. SAMARA
Assim como nas alturas,
disseste o que as palavras são.
O caos irrompe manhãs,
como um trem a avançar sobre os trilhos,
e a vida que deixas para trás clama
outro perdão
sobre vales circundados de memória.
É o corpo e sua terra,
a água longínqua a guardar os ruídos,
que retorna sempre sobre o caos de agora,
este que nos atravessa os sentidos.
14/04/2010 - 11h44